AGĂNCIA BRASIL
âOlha o salgadinho⊠cinco reaisâ. Matheus de Souza, de 27 anos, esperava, nesta sexta-feira da PaixĂŁo (18), os momentos de silĂȘncio da missa que abria o tradicional espetĂĄculo da Via Sacra, em Planaltina, a 50 quilĂŽmetros de BrasĂlia, para oferecer ao pĂșblico os produtos que carregava nos braços havia mais de trĂȘs horas.Â
Matheus se disse orgulhoso de ter o nome de um dos apĂłstolos de Cristo. O rapaz queria garantir a venda, mas tambĂ©m pedir ao xarĂĄ, SĂŁo Matheus, e atĂ© a Jesus Cristo, que ressuscitaria lĂĄ na frente dele, no alto do Morro da Capelinha, um emprego fixo e a chance de voltar a estudar para poder cuidar melhor das duas filhas crianças. Matheus Ă© pai solo e, mesmo tĂŁo jovem, diz que os sonhos sĂŁo como âmilagreâ.Â
âEstudei sĂł atĂ© a quinta sĂ©rie. Nem sei ler direitoâ.
Justo ele, que trabalha como auxiliar de limpeza em uma escola particular, mas que não tem recurso para entrar em uma sala de aula daquelas, de um preço tão salgado que ele nem sabe quantificar. A rotina no batente, de todos os dias que não são santos, vai das 9h às 18h.
Assim que o expediente termina, Matheus vai para o segundo turno, até as 22h, vendendo em sinais de trùnsito os sacos de salgadinhos que tentava oferecer na Via Sacra em Planaltina. Assim que chega em casa, busca as meninas na casa da avó para contar histórias a elas e começar tudo de novo no dia seguinte.
Letras decoradas
Outra espera de milagre tem o nome do pai de Jesus. Na Via Sacra de Planaltina, o cearense JosĂ© Silva, de 40 anos, vendia batata frita. AliĂĄs, essa atividade de comĂ©rcio ele conhece desde criança, em Juazeiro do Norte. HĂĄ 20 anos mudou para BrasĂlia e, desde entĂŁo, busca a sobrevivĂȘncia em pequenos bicos de venda atĂ© no transporte pĂșblico. Hoje, mais que ele mesmo, precisa levar o sustento para os cinco filhos em Ăguas Lindas de GoiĂĄs.Â
O problema Ă© que JosĂ© se considera analfabeto. Estudou apenas atĂ© a segunda sĂ©rie. Para embarcar no ĂŽnibus, decorou as primeiras duas letras iniciais e as Ășltimas duas do letreiro.Â
âSeria um milagre voltar a estudar, mas sĂł se Deus quisesse mesmoâ. Neste sĂĄbado, o percurso, de 85 quilĂŽmetros atĂ© o trabalho, demorou mais de cinco horas. âQuem estĂĄ sem trabalho precisa se virar mesmo. AmanhĂŁ serĂĄ outro diaâ, afirmou.
VoluntĂĄrios
A 52ÂȘ edição do espetĂĄculo da Via Sacra de Planaltina, uma das regiĂ”es administrativas do Distrito Federal, foi dirigida pelo dramaturgo Preto Rezende, o pĂșblico, que costuma chegar a 100 mil pessoas, e os comerciantes, todos acompanharam a captura, o julgamento, a tortura, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo em 14 estaçÔes, com a participação de 1,4 mil pessoas, entre tĂ©cnicos, atores e figurantes, que atuam voluntariamente.Â
As pessoas sĂŁo recrutadas na prĂłpria comunidade. Enquanto a emoção toma conta dos presentes, hĂĄ grupos que pagam promessas, cantam e rezam lembrando de sua prĂłpria trajetĂłria.Â
Cocos e flores
Um dos fiĂ©is, Carlos Silva, que tambĂ©m tem nome de santo e Ă© devoto de Padre CĂcero, optou por nĂŁo entrar nas estaçÔes da Via Sacra. Carlos preferiu esperar no pĂłrtico de entrada para oferecer produtos artesanais feitos com a palha do coco verde. ChapĂ©us, cestas de alimentos, flores⊠Ele, tambĂ©m analfabeto, diz que sonhava na infĂąncia, em Montes Claros, Minas Gerais, estudar medicina. Mas âtudo deu erradoâ.Â
Viu-se sozinho e sem a famĂlia. Virou pessoa em situação de rua por quase 10 anos. Passou a puxar carrinho de reciclagem e nas ruas aprendeu com amigos como se dobrava a palha do fruto. Aprendeu a escalar a ĂĄrvore e a dormir debaixo dela. Hoje, aos 39 anos, mora de favor, em Planaltina, com dois amigos, e sai pelas ruas para vender sua arte.Â
âTer uma casa para morar, terminar o curso de ensino fundamental pelo EJA [Educação de Jovens e Adultos] e alugar uma loja seriam milagres para mim. Eu ficarei rezando e ouvindo daquiâ. E, enquanto reza, suas mĂŁos transformam o coco em mais uma flor.